Mil impressões – Coluna Mensal
A questão é…
Há algum tempo, em um evento de quadrinhos aqui em São Paulo, encontrei com uma conhecida, ilustradora, com provavelmente mais de quarenta anos de carreira, uma quadrinista de mão cheia. Muito atuante nos anos oitenta e acredito que noventa também, produzindo razoavelmente bem para algumas editoras que então, naquele período, se dispunham a publicar material brasileiro. Porém, já há uns bons anos havia se retirado da produção de hq’s, não sei dizer se trabalhava ainda como ilustradora, acredito que não. Talvez tenha aposentado o pincel, justamente pela resposta a mim dada quando lhe perguntei se não se interessava em produzir material inédito, tendo em vista que hoje em dia temos um considerável número de editoras pequenas e médias que vem publicando material brasileiro. Ela, uma senhora de seus sessenta e poucos anos, tranquila e de fala pequena, olhou-me diretamente nos olhos com toda docilidade e me arrebatou: “Não, não… desenhar quadrinhos não é algo mais tão importante assim…”. O tempo parou, tudo em volta congelou, inclusive meu mental fez um pit stop em algum lugar que não ainda hoje não sei dizer onde era. Um segundo de silêncio, para depois refletir que, talvez, o questionamento não carecesse de acontecer, pois a resposta tranquilamente e educadamente dispensava necessidades. Eu não questionei, toda possibilidade de seguir adiante do ensejo terminou ali. A conversa rumou para outros campos.
Aquela resposta perdurou em minha cabeça durante um bom tempo. Não de modo obsessivo, mas como uma possível trilha interessante para, pelo menos, eu seguir dentro de minha estrada de quarenta anos “sérios” dentro dos quadrinhos brasileiros. Vale dizer que em 2024 comemorei essa efeméride publicando pela Editora Devir “As tentações de Santo Antão”, obra com roteiro e desenhos meus onde brincava de maneira “séria”, dizendo ser uma hq autobiográfica. O mito do santo, assim como a hq, conta seu duelo de décadas com Lúcifer, no deserto, na disputa de sua alma, hora alçada para as elevações divinas, hora jogada nos porões infernais. A luxúria, o desejo, a satisfação da carne e suas absolutas necessidades e o coração e alma em êxtase perante aquilo que realmente alimenta. Claro, “brincava” dizendo ser um quadrinho biográfico, não por me considerar uma figura boa, santa, mas pela dualidade eterna da carne e da alma estar em constante duelos. A minha pelo menos sim. E a sua?
O que eu preciso? Eu tenho fome de quê? O que pode calar um pouco essa necessidade? Que afinal, é a minha e de todos.
Quem acompanha minha carreira nesse tempo, sabe e pode exemplificar que fui das mulheres voluptuosas, carnudas de muitas hq’s, tendo seu apogeu na longa série da personagem Tianinha na primeira década dos anos dois mil, até obras grandiosas e talvez… pretensiosas… ??… como Yeshuah, “Cadernos de viagem”, “O santo sangue”, e recentemente a referida hq “As tentações de São Antão”. Sexo, santos e mantras? Mas ainda é na verdade, uma busca. É um olhar para todos os lados. É talvez mais que desenhar… ainda hoje é contar histórias. Mesmo que for em frente ao espelho.
Sou como tantos da época da frase que vivia ecoando: “Dá para viver de quadrinhos?”. Recentemente também me perguntaram numa live porque eu faço quadrinhos. A questão simples trouxe reflexões. Há a constatação que vive ecoando nas redes sociais, na boca amiúde dos analíticos de quadrinhos, que fazer e publicar hq’s não é fácil. O fato pesando sobre o sonho. Mas precisa disso? Em meados dos anos dois mil houve um tsunami de jovens autores que de lá para cá só vem aumentando e se renovando, mostrando um cenário prolífico. Para verificar isso basta comparecer em grandes eventos de cultura pop nas denominadas “alas/vale dos artistas”. Termo que me incomoda pois o campo dos artistas transcende as alas e os vales, os próprios eventos em si mostram. Algo que como observador lá atrás, de quem já vinha caminhando há tempos, pude perceber que essa caravana avançava sem lágrimas, sem desilusões, sem desesperanças, justamente com todo o oposto de muitos que para trás ficaram: “Nós queremos fazer!” Inerente ao espírito jovem, abandonando as lamúrias dos que não acreditavam no futuro… e claro… a questão que ainda hoje vejo correr nos eventos presenciais ou virtuais: “Qual o futuro dos quadrinhos no Brasil?” torna-se, com pedido de desculpas, aos que cultuam a questão, que dispensa análises. A coisa acontece aqui e agora. E se não está bem? Resiste com força e satisfação e afinal de contas, precisa mesmo estar bem? Olhe para o país e olhe para esse pequeno universo de gibis. O que te parece? Está ruim?
E aí, volto para minha amiga ilustradora e sua doce e tranquila resposta a minha questão: “…desenhar quadrinhos não é algo mais tão importante assim”. E não é mesmo. Para ela em sua amorosa e sábia aposentadoria, tudo certo. É muito vital, para toda essa geração que veio e ainda para os que vem vindo, com a força de quem abre seu caminho com arte e com querer. E para mim… ainda duelo com meus demônios no deserto, como Antão, buscando ainda entender qual a fome a ser saciada, do céu ou a do inferno… ou talvez, o que muito mais provável, as duas. Contando essa história olhando para o espelho.
Precisamos ter certeza de tudo?
Há quem diga que sim, mas as minhas reflexões na busca pela maturidade me fazem acreditar que não. Um pouco de dúvida faz bem, a incerteza nos convida a pensar melhor.
Esses dias fui ao cinema assistir ao filme Conclave, e o discurso oferecido pelo Decano Lawrence aos votantes falava sobre isso. Não tenho como reproduzir a fala dele, mas a mensagem era essa: ter certezas a respeito de tudo nos coloca num lugar de arrogância e as reflexões não têm espaço.
Acredito que maturidade é constante reflexão e compreensão de que podemos estar errados em várias situações. Pra mim, ser maduro significa ficar de boa com a necessidade de se reposicionar se você entender que tá numa direção errada. A certeza absoluta nos tira a razão mesmo que a gente pense já a ter.
Acho que já fui assim, mas percebi isso porque convivi com pessoas que tinham muitas certezas, e todas estavam erradas. Um exemplo? Bom, uma pessoa da minha convivência vivia se lamentando sobre as pessoas serem babacas com ela. Ela dizia: “Sou tão boa, eu não faço mal a ninguém. Mesmo assim as pessoas só me tratam mal”. Eu dizia: “Tem certeza que é tão boa assim?”, porque eu mesma já precisava lidar com inconvenientes causados por ela. Aliás, eu conhecia várias pessoas que tiveram experiências bem ruins em função dela.
Ela tava tão certa a respeito da bondade dela que não pensava duas vezes antes de tomar atitudes que pudessem trazer consequências ruins a outras pessoas. Na cabeça dela, ela se considera boa, significa que ela é incapaz de errar.
Refletir erros? Não, porque, na verdade, ela tinha certeza de que ela não merecia a injustiça de ser repelida por algumas pessoas.
Um pouco de dúvida é bom. Pelo menos eu a considero, em quantidades moderadas, essencial para ter equilíbrio e ser uma pessoa responsável.
Será que eu fui podre com alguém? Será que eu mereci ou contribuí para passar por essa situação ruim? Será que a culpa é do outro ou eu que não me ajudo? Será que eu não tenho que pedir desculpas?
Bom, tento fazer esse exercício diariamente, às vezes eu erro. E você?
Obrigada, Devir, pelo convite para participar dessa edição, chamem sempre! <3